segunda-feira, 1 de junho de 2009

Rien ne va plus

Para começar a trabalhar a partir deste meu ponto de intersecção, entre o que no século XVIII se chama "razão de Estado" e o conjunto de características do ser humano que ela visa promover, corrigir ou eliminar, escolhi um sistema em 7 partes, cada qual com o seu propósito analítico.

Peço desculpa se na última entrada fui demasiado críptico: devem ainda estar a questionar-se acerca do meu interesse por estas questões, esta obstinação em procurar uma qualquer essência que resuma as dinâmicas de crime/vigilância e a nova operacionalidade do Estado na minha época. Não creio que se trate disso.

Como sabem, revivo todos os dias a mesma situação, e revivo-a para vocês, espectadores. E se a minha vida é representação (não tenho uma relação com Balibari fora daquilo que representamos naqueles curtos minutos), pois bem, não me parece que disponha dos ingredientes fundamentais, definidores mesmo, do que chamamos uma "vida": a contingência, a surpresa, a irregularidade, a dúvida. São esses elementos que venho buscar, sempre numa lógica de representação, pois claro, à escrita. É a ligação que vou procurar com quem vive; com o vosso tempo (mesmo que seja um esforço solitário, não correspondido), que me vai proporcionar uma vida fora da tela.

Preparem-se - ou não - para o maior embuste de todos: a personagem esboçada no vosso mundo a devolver-vos, de sua voz, uma encenação pseudo-científica da vossa cara "modernidade". Não vos quero roubar processos de escrita e autores de referência por mera crueldade. Simplesmente, a minha libertação é-me bem mais preciosa do que a preservação da vossa vaidade disciplinada.

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Trata-se de um modelo de análise inspirado na roleta. Os textos surgirão como combinações destes conjuntos de problemas:

  • Pair: números pares

Em que se descreve o olho resplandecente do Estado. As definições que ele procura dar aos objectos de que se ocupa. As formas como descreve o diferente, o marginal, o anormal, o desregrado.

  • Impair: números ímpares

Em que se analisa os modelos de ilegalidade no século XVIII, nomeadamente no contexto das teorias governamentais do mercantilismo e do cameralismo. Modos de governar e modalidades de crime. Ilegalidades toleradas e não toleradas. A personificação das ilegalidades: o vagabundo, o libertino, o sedicioso, o ladrão.

  • Rouge: casas vermelhas

O jogo como metáfora da liberdade.

  • Noir: casas pretas

O jogo como metáfora da disciplina.

  • Passe: números 19 a 36

Em que se aborda o tema da libertinagem no contexto do desenvolvimento de uma "arte de amar". A "galanteria". O controlo e o uso das paixões.

  • Manque: números 1 a 18

Em que se usa o "sadismo" (e suas regras) como modelo de análise para as instituições disciplinares modernas: hierarquias disciplinadoras e heterotopias revolucionárias.

  • Orphelins: um tipo de aposta

Em que, através das características imaginadas para um súbdito-modelo (o casapiano, por exemplo), que é o primogénito do Estado (e da lógica governamental da "polícia"), se entende o que favorece e o que desfavorece este Estado e o que serão as suas lógicas de transformação.


A partir de agora, rien ne va plus.

Les Jeux sont faits

Eu, Laszlo Zilagy, húngaro, nascido por volta de 1975, mas tendo vivido os meus 3 minutos de fama no século XVIII - ou talvez no início do século XIX -, queria por este meio dar a conhecer a minha experiência de vida, tanto para descanso da minha alma como para satisfação do meu temperamento: que me leiam ou não, pouco importará, a posteridade pode e deve existir para além do reconhecimento. O que não é lido não deixa, como que por magia, de existir.

Tenho a sorte, ao contrário de muita gente, de conhecer com perfeição o meu Criador. Baptizou-me um Sr. Kubrick, embora se diga que me deu à luz um Sr. Thackeray. Todos nós nascemos, alguns passámos pelo Baptismo, nisto não me parece haver grande novidade. Encarnou-me um Sr. O'Neal e nele vivi em conversa com Monsieur le Chevalier de Balibari.

Sei, pois, quem me fez a mim, mas acima de tudo quem construiu o meu Universo. Entre o Sr. Thackeray e o Sr. Kubrick, e algures na leitura do primeiro pelo último, vim ao mundo para viver na Intersecção. Há em mim algo que serve a toda essa gente de 1975 (e daí em diante), como também me atravessa, julgo eu, uma qualquer narrativa sobre o passado. Não me vejo capaz de discorrer sobre isso, talvez seja uma questão a pôr ao Sr. O'Neal e à sua relação com o desconfortável guarda-roupa, o interior dos palácios, os cheiros a perfume e pó de arroz, e a observação, pela janela, dos jardins de recorte iluminista.

O tal de Sr. O'Neal deu corpo e voz a Redmond Barry, jovem impetuoso, cuja série de felizes infortúnios o levaram à condição - ou possibilidade - de desembocar na minha pessoa. Foi-me também dito que precedo, tanto em narrativa como em actor, um Sr. Barry Lyndon, de Castle Lyndon, e suas infelizes fortunas, das quais nada sei.

Como devem já saber, fui posto ao serviço do Ministro da Polícia, por intermédio do Capitão Potzdorff, para vigiar o Chevalier de Balibari, célebre Jogador, famigerado libertino, possível espião: é no espaço e na duração desta conversa que, infelizmente, decorre toda a minha existência. Sou a mentira e o oportunismo de Redmond, sou a promessa de Lyndon; sirvo o Estado mas ele não vive dentro de mim; faço da vida um jogo e em breve fará ela um jogo de mim. Desapareço no momento em que reconheço no libertino o meu conterrâneo, o espelho da minha forma de existir. O meu breve instante de vida é aquele em que Laszlo Zilagy, simulacro do Estado com função de vigilância (apêndice do olho que tudo vê porque tudo ilumina), se identifica com aquilo que deve denunciar.

Penso estar bem posicionado, já que vou revivendo este meu instante todos os dias, para dar conta das estratégias deste nosso Estado que não pára de crescer, e das linhas por que se cosem estes homens infames que parecem enxamear o nosso século.

O leitor já deve ter percebido que nada disto passa de mentira, ilusão ou simulação. Pois bem, a vós, senhores do século XX em diante, resta-vos escolher...! Sou uma criação vossa, do vosso tempo, para vocês. Levando-me a sério, poderá isto parecer-vos entretenimento? Levando-me na brincadeira, numa perspectiva jocosa, poderá tudo o que se segue tornar-vos o espírito grave? A polícia, para funcionar, precisou de uma estranha empatia com o libertino; o jogo nunca se concebeu fora de um propósito disciplinar. Poderá esta simulação que encarno abrir caminho para um conhecimento disciplinado de um tempo que vocês gostariam de imaginar?

O vosso,

Laszlo.

Orphelins


"... Com toda a segurança, me atrevo a segurar a V. Exa., que este projecto é bem capaz de produzir aquelas vantagens, que V. Exa. louvavelmente deseja para a futura sólida duração da Casa Pia em benefício do Estado, dos Pobres, que ali se abrigam, e de outros, que por ela são fora socorridos. Até se poderá talvez fazer o estabelecimento igualmente útil de uma casa, onde os Inválidos se abriguem, falo daqueles, que no serviço de Sua Majestade, e do Público, ou por idade, ou por moléstias se inhabilitaram, para poderem procurar a sua subsistência.

V. Exa. que tanto se desvela pelo serviço de Sua Majestade, pelo bem geral do Estado, e da humanidade, dará este plano o peso, que julgar merece, atendendo aos interesses, que resultam de um estabelecimento tão útil, tão pio, tão vantajoso como deve ser considerada a Casa Pia.

Lisboa, oito de Dezembro de mil setecentos noventa e oito

Ilmo. e Exmo. Sr. Marquês Mordomo Mor

O Intendente Geral da Polícia da Corte e Reino Diogo Ignácio de Pina Manique."