segunda-feira, 10 de agosto de 2009

4, noir

Saiu na roleta o 4, preto, par, manque. Os "anormais" são aqui abordados à luz da nova concepção de homem "vivo" que o Estado subscreve e vai procurar descrever ("o olho resplandecente do Estado"). Fala-se aqui de disciplina (noir). Fala-se também de instituições disciplinares modernas: hierarquias disciplinadoras; heterotopias (sítios "outros", novidades na paisagem urbana) que devem produzir, estrategicamente, a conformidade a partir da marginalidade.


Todo esse novo "humanismo" do século XIX; libertação dos povos, reivindicação generalizada de direitos ... toda essa retórica de Salvação, não assinala mais, a partir de finais do século XVIII, do que as fronteiras legítimas do poder de punir.

O nascimento do "homem", que seria um «homem-medida, não das coisas, mas do poder» (Foucault, 1975), responderia assim, a partir do sistema legal, ao duplo perigo da tirania e da sedição: a montante, que os súbditos não mais deveriam sujeitar-se à arbitrariedade de uma soberania descontrolada; a jusante que a boa ordem social não poderia ser quebrada por qualquer tipo de insurreição ou movimento revolucionário que pusesse em causa as novas noções de propriedade e liberdade de comércio. Na viragem para o século XIX, este "homem" é então apresentado, na perspectiva legalista, contra os excessos (o corpo supliciado do condenado à morte, a hiper-regulamentação do mercantilismo) e as lacunas (sistema policial ineficiente, pouco atento à propriedade, deixando grande parte da população criminosa na impunidade) da soberania «absolutista».

Suavização das penas, pois, mas também maior infiltração do poder de punir na sociedade...

O Estado aparece, simultaneamente, como uma força aglutinadora das técnicas disciplinares: ainda num quadro formal de Antigo Regime, a partir dessa teoria de governo que é o mercantilismo, vemos o Estado a fundar instituições escolares assentes na disciplina jesuítica/oratoriana (Portugal: Marquês de Pombal), a fomentar um tipo de proto-industrialização baseada nas disciplinas (Portugal: Conde da Ericeira, Marquês de Pombal), a organizar o exército segundo as mais inovadoras técnicas provenientes da Europa central (Portugal: Conde de Lippe). Se o liberalismo se constituiu como um contra-poder na forma de entender a função do Estado e das leis, apresentou-se no entanto como grande continuador/promotor das políticas de apropriação do poder disciplinar.

Mitigação das penas e do castigo, maior infiltração do poder de punir na sociedade (com uma polícia bem diferente da que o século XVIII havia instituído), insistência na disciplinarização do corpo social...

Mas o sonho regenerador dos reformadores do século XVIII, assente numa definição do «homem» legal e dos limites de legalidade no exercício do poder e da contestação ao poder, terá no decorrer do século XIX as ciências do homem (psicologia, psiquiatria, criminologia, etc) como principais locutoras: é preciso agora fazer falar os homens não apenas para compreender de que lado da lei se encontram (se são vagabundos e não se "fixam" ou trabalham, se são libertinos e não se corrigem, se são sediciosos e não se conformam, se são ladrões e não se reformam), mas para perceber em que nível de humanidade transitam. É em instituições disciplinares que esse trabalho vai começando a ser feito, com um acompanhamento crescente das ciências e do seu trabalho de observação e prescrição.

Com a lei definiu-se o homem livre (aquele que deve ser protegido da tirania e da revolução, ou seja, que deve ser mais eficientemente vigiado, punido e disciplinado); com a ciência procurou-se dizer a verdade sobre ele e, através dela, salvá-lo. Tanto a salvação pela lei como a salvação pela ciência têm na instituição disciplinar o seu ponto de aplicação fundamental nesta viragem de século e no decorrer de todo o século XIX. O poder de punir (prisões/penitenciárias), o poder de curar (hospitais), o poder de educar (escolas), caem todos do lado das tecnologias de «transformação regeneradora». Como se a formação do homem-cidadão implicasse sempre - independentemente das evidentes diferenças entre cada uma destas formas de institucionalização - a sua transformação de criança, adolescente, louco, enfermo ou criminoso, em cidadão.

Os «anormais» parecem ter algo em comum com essa criação da criminologia do século XIX, os delinquentes, embora os primeiros surjam muitas vezes como casos de sucesso ou insucesso da medicina e da reintegração social, e os últimos como o exemplo da falência do sistema penitenciário. Mas são ambos casos de sucesso pelo facto de a sua «salvação» não lhes pertencer: é a salvação da sociedade que está em causa. No caso do delinquente, e de acordo com todos os críticos do sistema prisional desde a sua instalação, é a prisão que não reforma os indivíduos, não conduz o criminoso até à luz da civilidade; pelo contrário, cria uma população de criminosos precários que é depois reconduzida para o corpo social enquanto tal, ou presa ao sistema por intermédio de pequenas punições e recompensas, produzindo trabalho «policial» em regime de semi-ilegalidade no interior do mundo do crime.

Tal como os anormais nos quais se encontra alguma «utilidade» (é o caso dos cegos), os delinquentes constituem uma população controlável, com os seus circuitos próprios e expectáveis, cuja gestão é feita consoante necessidades específicas. Há como que um eterno retorno à ordem e ao Estado enquanto salvaguarda dessa ordem: uma vez que a linguagem do Estado se instala no interior destes indivíduos (seja por uma lógica de educação/doutrinação, de «endividamento social», ou pela permanente circulação em espaços inteiramente controláveis), deixa de importar qualquer noção de salvação individual. A sociedade, como um todo, continuará a desejar a sua (re)integração - tal como os próprios, de resto - enquanto aceita necessariamente a violência discursiva que sobre eles se opera. No caso do delinquente, a salvação sempre reactualizada da sociedade civil - tal como existe sobretudo na segunda metade do século XIX - é garantida precisamente pela reincidência criminosa: os «incorrigíveis» do sistema asseguram a unidade, no medo da perda de bens, entre o patronato e a massa operária. A retórica da regeneração, no entanto, vai justificando, por um discurso da Salvação - não pelas práticas -, a manutenção desse «fracasso feliz» no governo da marginalidade.

A governação do «diferente» inscreve-se necessariamente na estratégia segundo a qual indivíduo e população se governam com maior eficácia quando em permanente correlação. É por esta razão que a conformidade se traduz sempre num discurso da Salvação por parte do Estado e numa vivência (naturalizada) do quotidiano por parte dos indivíduos institucionalizados. É essencial que o Estado esteja instalado dentro de cada um como se se tratasse de uma experiência inteiramente subjectiva de vida, ou de biografia, em direcção à redenção/Salvaçao. No momento em que um cego não pode mais falar de si, ou biografar-se, sem estar necessariamente a referir-se ao seu processo de institucionalização; nesse preciso momento histórico em que se começa a naturalizar a ideia de que o triunfo sobre a adversidade corresponde a uma vida normal vivida na diferença (ou de uma subjectivação potenciada no interior de regimes normalizadores); pois é precisamente nesse processo que conduz ao inquestionável que podemos observar as minudências do poder: o «cego» consegue-se através de um discurso da vitória do sujeito sobre a deficiência (que o escraviza) e em direcção à autonomia, que é simultaneamente um processo de adequação tecnológica à norma, conjunto de práticas que se inscrevem também elas num discurso subjectivo e generalizado da felicidade: trabalhar num determinado sentido, ultrapassar o patamar da inutilidade e realizar-se a um nível inteiramente pessoal.

O indivíduo no século XIX já não tem que ser salvo, e, no caso da delinquência, nem mesmo reformado ou reintegrado: o que deve ser é totalmente captável, descritível, produtor de sentidos de conformidade ou desvio num espaço estável ou em movimento, desde que observável e objectificável numa analítica em que se compare - e seja comparado - com grupos mais ou menos homogéneos, no interior ou no exterior do edifício onde foram institucionalizados.